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Lia Assumpção

O kindle e o homem de couro

ECOA

22/03/2020 04h00

Minha amiga Giu, analógica como eu, rendeu-se ao Kindle, depois de alguns conflitos internos… Kindle é aquele aparelhinho que pode substituir livros de papel. Somos unidas pelo analógico, porque sentimos prazer em ver o livro sendo percorrido pelo marcador, e eu, particularmente, adoro poder grifar com lápis e voltar para as páginas marcadas com post-it.

Mas sim, o Kindle tem vantagens, admito: você pode baixar muitos livros sem que eles pesem (como pesariam se fossem de papel), além de poder consultar dicionários e uma porção de outras coisas… Ele não é a coisa mais barata que você pode comprar, mas também não custa o preço de uma casa, como diz uma amiga.

Enfim, Kindle em mãos, ela se entregou e foi feliz. Depois de uns dez dias de uso, ele não ligou mais. No telefonema com a assistência técnica, o atendente, sem surpresas, disse "claro, ele ainda está na garantia, te devolvemos o dinheiro e você compra um novo" ao que ela disse "que ótimo e pra onde eu mando esse equipamento que não funciona?" ao que ele respondeu "não precisa, pode descartar". Oi? "Mas, moça, vocês não se responsabilizam, não coletam o aparelho? vai pro lixo assim?" (minha amiga tentando uma resposta mais racional…) "A gente indica alguns endereços, mas a senhora que tem que levar. Se não quiser, não precisa" (atendente seguindo a política da empresa dentro da lógica vigente do compra-usa-descarta).

Ela lembrou de mim, me escreveu contando, sabendo que viraria um assunto aqui, afinal é meu assunto de interesse e as pessoas sempre acabam lembrando de mim quando essas coisas acontecem.

De novo, perguntas vêem à minha cabeça: Como pode custar tão barato a ponto de ser assim descartável? Será que esse defeito é muito frequente e por isso eles já estejam assim tão habituados? E se esse defeito é assim tão frequente, por que será que eles não consertam, corrigem no próximo modelo, fazem um re-call?

E o homem de couro? É a tradução livre do nome de uma marca de canivetes/ferramentas americana que se chama Leatherman. Coincidentemente, uns dias depois de receber as mensagens da Giu me contando o caso do kindle, conheci essa marca porque ouvi de um outro amigo o depoimento de que seu canivete tinha chegado. "De onde?" "Da fábrica. Essas ferramentas são feitas para durarem para sempre e, se qualquer coisa acontecer com elas, você vai na loja que comprou, ela manda de volta para fábrica que conserta e te devolve, você paga só o custo do correio".

Diferente, não? Diferente porque um opera na lógica do compra-descarta-compra e outra na lógica de que todos temos uma responsabilidade compartilhada sobre produtos e que é possível produzirmos de outra maneira.

Fui fuçar na marca e eis que o canivete é quase o MacGyver em forma de canivete. Tem alicate, tem faca, tem chave de fenda… loucura. MacGyver é o nome de uma série de TV mais pro antigo, tá? Mas, enfim, o protagonista que tinha esse nome, conseguia sair de qualquer armadilha e resolver qualquer problema com apenas um fósforo, ou apenas uma chave dessas de abrir porta mesmo…

As Leatherman são esse personagem em forma de ferramenta. Ainda mais que no site deles, tem um vídeo contando a historia da marca e do senhor (homônimo) que a inventou. Tem também histórias de americanos que foram salvos pela ferramenta, mas essas me comoveram menos do que a de como ele foi inventado: numa viagem de baixo custo que fez com sua mulher pela Europa num fiat 400, ali pela década de 1970. A mecânica do carro era simples, e ele mesmo consertava o carro nos muitos quilômetros que percorreram. E o canivete era ali peça-chave, mas ele voltou com vontade de que o canivete tivesse também um alicate. Esse foi o mote, e é a diferença dessa Letherman para um canivete daqueles vermelhinhos que a gente está acostumado: ele conserta carros.

No meu mundo ideal, consertaríamos carros, chaleiras elétricas e impressoras; poderíamos ter a escolha de consertá-las e mantê-las conosco o tempo que achássemos justo. Não jogaríamos fora, porque não tem peça ou porque o conserto é caro.

Achei curioso acessar as duas histórias num curto espaço de tempo, por isso a comparação. Quando penso nelas, fico com a resiliência de que o mundo funciona como o Kindle, e com a esperança de que tem gente imaginando outros mundos como o do Letherman, que é apenas um exemplo, entre muitos que tentam escapar da lógica vigente.

Sobre a Autora

Lia Assumpção é designer, mestre em Arquitetura e Design pela FAU-USP, curiosa dos assuntos relacionados a consumo e sustentabilidade.

Sobre o Blog

Este blog é sobre consumo consciente porque nem tudo que é reciclável é reciclado. É escrito por uma designer, inquieta com a maneira como consumimos e descartamos coisas e crédula de que só uma iniciativa compartilhada entre indústria, poder público e consumidores conscientes pode alterar a lógica consumo-descarte vigente. A ideia aqui é falar sobre atitudes cotidianas, tentando um meio a meio entre reflexões e soluções práticas.