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Lia Assumpção

"Mais gente, mais mercado"

ECOA

09/02/2020 04h00

Uma vez, a prima diplomata do meu marido me contou uma história da época que morava no Canadá. No Canadá, neva um monte no inverno. E a neve, quando derrete, é que igual ao gelo que fica na parede do seu congelador e, quando você esquece ele um pouquinho aberto, faz uma parede de gelo que uma parte fica grudada na parede e a outra derrete um pouquinho e faz uma camadinha fina em forma de chão do freezer, sabe? Assim, uma espécie de tapetinho de gelo, digamos. Mas, gelo derrete e fica lisinho; bom, tem patinação no gelo, né?  De tão lisinho que pode ficar.

Então, ela morava lá e nevou muito. E uma parte do gelo derreteu e ficou assim, que nem o chão do congelador, só que na rua em frente da casa dela. E ela, voltando pra casa um dia, viu a senhora que era sua vizinha limpando o gelo da frente da casa dela com mil aparatos e etapas… Tinha pá, tinha alguma coisa que quebrava ou derretia o gelo… Enfim, era um processo demorado aquele de limpar o gelo da calçada e ela pensou: "Ah, depois eu limpo". 

E no mesmo dia, ou no dia seguinte, não me lembro, ela encontrou outra senhora de outra casa na mesma rua, ali no mesmo passo a passo de tirar o gelo. Neste momento, ela se deu conta que haviam muitos idosos ali e que o gelo escorregava. Seria uma temeridade não seguir o passo a passo que ela, neste ponto, já conhecia. Então, munida do equipamento necessário, iniciou o seu próprio passo a passo. E enquanto se livrava do gelo da frente da sua casa, alguns vizinhos passaram por ali e agradeceram o que ela estava fazendo. Um deles disse: "Obrigada por cuidar da nossa rua. Se não cuidarmos uns dos outros, ninguém fará". E ela se comoveu. Eu também. 

E penso muito nisso quando penso nos assuntos todos que falo aqui. Porque sustentabilidade, economia circular, entre muitos outros, são ideias e conceitos que entendem nossa vida como coletiva, como sociedade, como um cuidando do outro. É difícil pensar no planeta porque não temos a dimensão dele como um todo, não? Parece impossível cuidar do planeta, não? Mas e se pensarmos em coisas que são nocivas para nós mesmos? No final, elas também dizem respeito ao planeta.

É difícil sairmos da lógica do compra-usa-descarta (que vai no caminho contrário desse pensar uns nos outros dos parágrafos acima) porque estamos habituados a viver assim há bastante tempo. Ainda que saibamos que não foi sempre assim. A coisa mais legal que eu aprendi estudando obsolescência programada (esse nome difícil para essa prática de compra-usa-descarta que se personifica no celular que a gente não consegue consertar e acaba jogando fora, trocando por um novo ou sei lá…), é que isso foi uma coisa imposta pelo mercado; venderam uma ideia pra gente de que temos que consumir sempre mais; e para isso temos que ser sempre mais para consumir sempre mais. Vivemos um tempo em que o crescimento era exponencial e talvez por um tempo pudesse mesmo ser, mas talvez esteja na hora de repensar essa premissa… Por que ela é a base do compra-usa-descarta nocivo.

Nos EUA, na década de 1950, tinha um relógio em Washington que marcava o número de nascimentos em tempo real; números azuis para nascimentos, vermelhos para mortes e um branco mostrando o "consolidado" da população. Ao lado do relógio, um cartaz com os dizeres "mais gente, mais mercado", indicando que, na verdade, o número "consolidado" entre nascimentos e mortes era, na verdade, o número de consumidores e não de pessoas ou cidadãos, como poderia se pensar…

Li o livro do líder indígena Ailton Krenac outro dia, que tem e não tem a ver com o que acabei de falar. Lembrei dele porque fala de humanidade, nesse sentido do coletivo, que nem a rua da prima diplomata, que é dela e é de todos ao mesmo tempo. Recomendo muito a leitura (é um livro pequeno, com ideias maravilhosas) e reproduzo aqui um trecho: "Talvez estejamos muito condicionados a uma ideia de ser humano e a um tipo de existência. Se a gente desestabilizar esse padrão talvez a nossa mente sofra uma espécie de ruptura, como se caíssemos num abismo. Quem disse que a gente não pode cair? Quem disse que a gente já não caiu? (…) Então, talvez o que a gente tenha de fazer é descobrir um paraquedas. Não eliminar a queda, mas inventar e fabricar milhares de paraquedas coloridos, divertidos, inclusive prazerosos."* 

Caminhamos até aqui e seguimos caminhando, sem voltar pra trás. E conhecer nossos erros e acertos, talvez nos ajude a pensar na maneira como vivemos agora, sem saudosismo, mas com sabedoria. Para termos poder de escolha e capacidade de mudança. Acho que estamos num momento de mudança grande, talvez em queda mesmo. Mas procuro acreditar também que somos capazes de inventar paraquedas de vários tipos; como pessoas, cidadãos, humanos, colegas de planeta, humanidade… Não como consumidores ou números.

*O livro é: Ideias para o fim do mundo; o autor Ailton Krenak. Companhia das Letras, 2019. E esses trechos são das páginas 57 e 63.

Sobre a Autora

Lia Assumpção é designer, mestre em Arquitetura e Design pela FAU-USP, curiosa dos assuntos relacionados a consumo e sustentabilidade.

Sobre o Blog

Este blog é sobre consumo consciente porque nem tudo que é reciclável é reciclado. É escrito por uma designer, inquieta com a maneira como consumimos e descartamos coisas e crédula de que só uma iniciativa compartilhada entre indústria, poder público e consumidores conscientes pode alterar a lógica consumo-descarte vigente. A ideia aqui é falar sobre atitudes cotidianas, tentando um meio a meio entre reflexões e soluções práticas.