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Lia Assumpção

Portas de entrada e saída

ECOA

02/02/2020 04h00

Estava lendo esses dias sobre os novos carros da Tesla, movidos a energia elétrica. A empresa está ali entre as mais mais de valorização de mercado, o que significa que o pessoal tá apostando no carro elétrico. Isso porque ele é classificado como um transporte limpo, sem emissões de CO2 no nosso famigerado planeta. E, também, porque esse tipo de transporte está entre as metas de muitos países europeus. A Noruega, por exemplo, quer proibir a venda de carros movidos a gasolina ou diesel até 2025, então até este ano, vai tudo ser elétrico. França e Reino unido pensam em fazê-lo até 2040.

Enfim, essa coluna leva esse título porque, como escrevi no ano passado, o segundo caso que se tem notícia de obsolescência programada (aquele nome difícil para aquela situação familiar do celular que quebra e vale mais a pena trocá-lo do que consertá-lo) foi dos carros (o primeiro foi o da lâmpada).

Recapitulando: precisava movimentar a economia americana em crise e precisava vender mais. O pessoal começou a falar pra gente comprar mais. Fizeram as lâmpadas durarem menos pra gente comprar mais durante a vida; sugeriram de termos dois de tudo (duas casas, dois carros); sugeriram também termos o mais moderno; "esse modelo do ano passado tá caído, compra o desse ano; aliás, troca todo ano, tá?", eles diziam. Sabe aquele rabo de peixe do carro que era lindo ano passado? Pois é, esse ano é horrível… Além do mais, ele quebrou e não consigo consertar…

E isso tudo, junto com outros ingredientes, ajudou a dar nesse nosso cotidiano de compra-usa-descarta, que está fazendo o mundo virar uma grande lixeira.

E tô repetindo tudo isso aqui hoje, porque a Tesla me fez pensar nessa coisa da entrada e da saída. Fomos apresentados à obsolescência programada pelas lâmpadas e carros e são elas que estão nos dando pistas da saída.

Sei lá, por um tempo, eu achei que os carros iam — ou deveriam — acabar. Ainda acredito que a solução está em transporte coletivo e transportes variados (de ferro e pluviais também) para pessoas e mercadorias. Acredito também que quanto mais compramos localmente, menos a gente precisa do transporte, mas enfim, isso é todo um outro assunto… 

Mas eis que o sistema que a Tesla apresenta, com uma promessa de updates sem termos que trocar o carro todo, é uma maneira de produzir artefatos que soam como um caminho a ser seguido. Contou-me o amigo do amigo, que tem um carro da Tesla, que acabou de fazer a atualização do sistema. Entre outras coisas, o update possibilita até ir para algum lugar sem que ele precise guiar o carro efetivamente, direção autônoma se diz. Eu sou do tempo da vitrola, ainda me aflige um pouco entrar num carro sem motorista, confesso; porém, o ponto disso tudo aqui não é esse. É a ideia de você querer muito (ou mesmo precisar) não guiar o carro e ele ir sozinho, e isso ser possível sem que seja necessário trocar o carro todo.

No meu mundo ideal, as coisas deveriam ser fabricadas e comercializadas desta maneira, pois evitaria muitos descartes desnecessários. E já que retomei a obsolescência programada, vou exemplificar com o celular: imagina só se a gente pudesse trocar uma parte pequena do celular; vamos lá na loja, trocamos um décimo dele por uma peça que nos permite ter mais memória, ser mais rápido e que custe também um valor correspondente ao seu tamanho. E assim não jogaríamos fora o celular todo, aliás nem jogaríamos ele fora; trocaríamos somente essa parte que precisa de atualização para que a vida possa continuar acontecendo nele. A peça velha fica ali na loja e é reaproveitada. 

A Tesla me faz pensar nessa maneira de fabricar produtos e também no investimento em tecnologia limpa. São duas coisas que, apesar de todas as ressalvas de estarmos falando de carros, traz pontos positivos, pois apresenta uma maneira de produzir que pode abrir portas para esse não descarte que acabei de falar; e traz também uma frota menos poluente.

E a lâmpada? A lâmpada era de filamento até outro dia, né? Aí descobriram que era meio ruim e trocaram tudo. E disse que essa é bem melhor, menos poluente e dura mais… Ó: o caminho de volta para chegar na porta que entramos, de novo. Ainda mais que, nesse caso, os soquetes continuam iguais. Não é que nem a nossa tomada de três pinos, né?

Sobre a Autora

Lia Assumpção é designer, mestre em Arquitetura e Design pela FAU-USP, curiosa dos assuntos relacionados a consumo e sustentabilidade.

Sobre o Blog

Este blog é sobre consumo consciente porque nem tudo que é reciclável é reciclado. É escrito por uma designer, inquieta com a maneira como consumimos e descartamos coisas e crédula de que só uma iniciativa compartilhada entre indústria, poder público e consumidores conscientes pode alterar a lógica consumo-descarte vigente. A ideia aqui é falar sobre atitudes cotidianas, tentando um meio a meio entre reflexões e soluções práticas.