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Lia Assumpção

Quanto você pagaria pelo ar?

ECOA

29/12/2019 04h00

Frequentamos uma cidade pequenininha no sul de Minas Gerais que se chama Jacutinga. Perto do sítio tem uma fábrica de água. Enquanto escrevi "fábrica de água", me dei conta da contradição. Fábricas não produzem água, certo? Produzem garrafas e engarrafam a água que nasce linda e pura ali na montanha. Teve um tempo que essa fábrica não estava ali. A gente sempre bebeu aquela água, e ela é muito gostosa. Eu sempre achei que ela era gostosa porque vinha ali da fonte que tem no caminho da cachoeira: só de você pegar a água ali, no meio de pedrinhas, já dá uma sensação de frescor… Mas aí o pessoal que fez essa fábrica, aparentemente, descobriu que a água é gostosa porque tem baixo teor de sódio e também, por isso, vende horrores. A fábrica fez toda uma campanha de pureza,  leveza e benefícios para o corpo e vida saudável… De acordo com a campanha, esse baixo teor de sódio na água também te ajuda a emagrecer. 

Mas o fato é que a fábrica se instalou ali e nossa vida pacata foi surpreendida por muitos caminhões, que além de ocuparem a largura inteira da estrada rural e a deixarem toda lamacenta, nos acordavam no meio da noite com um barulhão. Aliás, acordavam não só a nós,  como também todos os moradores que vivem ali na região. Descobrimos que aquela circulação não era exatamente legal, o que nos levou a descobrir que a extração da água também não era exatamente legal, porque excedia uma capacidade estabelecida por lei, o que acabou por fazer com que a água tão pura da montanha, chegasse não tão pura no município.

E isso tudo virou uma representação pública (uma pessoa juntou um monte de documentos e entregou ao ministério público dizendo "Ó, isso aqui não parece bom não"), que depois virou uma ação pública civil contra essa fábrica. E eles tiveram que devolver 4 milhões para a comunidade de Jacutinga pelos danos causados, fazer uma estrada compatível com o fluxo de caminhões que transitam por ali, além de, teoricamente, adequar a extração de água, para que ela seja sustentável no sentido amplo e completo do termo, ok? Não aquele sustentável elogio tema de outra coluna. Nesse exemplo, um dos aspectos diz respeito a pegar água dentro das leis estabelecidas garantindo, assim, que tenha sempre água para nós e para os filhos dos nossos filhos e dos filhos deles… 

Mas quis contar essa história porque ela me fez pensar em um filminho de uma ambientalista que se chama Annie Leonard, que colocava a seguinte essa questão: em que momento a água passou a ser engarrafada? Na verdade, o pessoal que chegou de caravela aqui já trazia água em potes de barro; e na verdade até antes dele. 

No filme de Annie Leonard, ela diz que em um dado momento a indústria descobriu esse filão da água. E passou a aterrorizar as pessoas dizendo que a água da torneira era péssima, que fazia mal, que era suja, ou sei lá o quê, e que a vida saudável, com passarinhos cantando, só seria possível bebendo água mineral. E a gente comprou essa ideia e passou a beber água mineral em garrafinhas. E foi a água Perrier que inaugurou essa valorização da água mineral e engarrafada.

E aí eu imagino essa historia que aconteceu em Jacutinga em muitos lugares, porém, sem representação pública que "controle" um pouco a coisa. E quando eu penso ainda que uma grande parte de todo esse plástico que infesta nosso planeta (e que vira microplástico que a gente bebe e nem sabe quanto mal vai fazer pra nós) vem de garrafas de água, fico na dúvida pra onde apontar minha indignação. Penso que deveria ter uma lei que garantisse que se eu quiser beber água da torneira eu posso. Nesse caso, minha indignação vai para o poder público, que deveria garantir que todo estabelecimento público fosse obrigado a disponibilizar isso, e que em todo lugar público tivesse água potável. Penso também que, da mesma maneira que fico alarmada com o volume de garrafas de água mineral que compõe esse lixão de plástico que não é efetivamente reciclado, os donos das fábricas de água (de embalagens como falamos lá no começo), também deveriam estar, porque eles também são pessoas que leem notícias, bebem água com microplástico, ouvem falar da crise da água e do aquecimento global e, eventualmente, tem filhos e netos que deveriam também poder beber água um dia… Será que esse pessoal vive no mesmo lugar que eu?

Tudo bem que tem empresas de água que tentam fazer a sua parte, ainda falo desses casos aqui. Mas, particularmente, ainda acredito que deveríamos focar na redução de produção e consumo delas. Na prática, isso quer dizer que você poderia sair com a sua garrafinha, qualquer que seja ela, e encher ela por aí, sem comprar novas. Talvez instalar um filtro na sua casa, ao invés de comprar água mineral em garrafas descartáveis. Ou procurar empresas que recolham as embalagens depois que bebemos a água, caso seja um estabelecimento comercial.

Lá no filme da Annie Leonard ela fala que o próximo passo é a ideia de vender ar. Que a venda de água foi um pouco por esse caminho: é um bem de todos, mas que agora a gente tem que comprar. E pode?

Sobre a Autora

Lia Assumpção é designer, mestre em Arquitetura e Design pela FAU-USP, curiosa dos assuntos relacionados a consumo e sustentabilidade.

Sobre o Blog

Este blog é sobre consumo consciente porque nem tudo que é reciclável é reciclado. É escrito por uma designer, inquieta com a maneira como consumimos e descartamos coisas e crédula de que só uma iniciativa compartilhada entre indústria, poder público e consumidores conscientes pode alterar a lógica consumo-descarte vigente. A ideia aqui é falar sobre atitudes cotidianas, tentando um meio a meio entre reflexões e soluções práticas.