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Lia Assumpção

O furo ou a furadeira

ECOA

14/10/2019 09h06

 

Esta coluna seria, inicialmente, sobre consumo sustentável. Quando comecei a escrever e tudo começou a ganhar forma, pensei que o consumo por si só, hoje, não é muito sustentável… Então, adotei consumo consciente e comecei a pensar nas palavras todas que circundam essa ideia, me deparando com outras palavras e expressões, que falarei mais detalhadamente nos posts que virão… Uma dessas expressões é consumo colaborativo, que é a escolhida para hoje.

Consumo colaborativo tem a ver com economia compartilhada e foca no serviço, não no produto. Assisti algumas palestras de um designer, que se chama Marcos Batista, em que ele perguntava ao público: "Você precisa da furadeira ou do furo?". E não é que a gente precisa mesmo é do furo!? Essa pergunta ajuda a entender a diferença entre produto e serviço e, consequentemente, do consumo colaborativo. Ela também pode ser feita para uma porção de coisas… Precisamos do sabão em pó ou da embalagem dele? Do carro, da bicicleta, do patinete, ou nos locomover? Um outro designer lá na década de 60*, também perguntava algo parecido: somos vizinhos, moramos numa vila, todos cortamos grama uma vez a cada 15 dias, por que mesmo cada um de nós tem que ter um cortador de grama? Por que mesmo não dividimos um, uma vez que a chance de querermos cortar a grama no mesmo dia é muito baixa? (ele ainda ia mais longe, dizendo que a grama por si só não tinha muita função… porque não dava frutos nem flores e dava muito trabalho na manutenção… enfim, fiquei pensando nisso também, mas não vem muito ao caso aqui…).

A conta é meio assim: alugar ou compartilhar coisas, diminui o número de coisas produzidas. Se compartilhamos uma bicicleta, digamos, em 5 pessoas, são 4 bicicletas a menos no mundo. Isso, transposto para uma empresa que aluga bicicletas em grandes cidades, é multiplicado muitas vezes, pois são muitas pessoas que deixam de comprar uma bicicleta, para alugar uma. É o serviço e não a posse: precisamos nos locomover, nos locomovemos em horários diferentes, moramos perto, dividimos uma bicicleta.

Vale dizer, que negócios como esse, além de reduzir a produção de bens de consumo, mudam também a maneira como são projetados. Porque se uma bicicleta vai ser usada por diversas pessoas que dirigem de um monte de jeitos diferentes, ela tem que ser mais resistente. Porque o cara que aluga as bicicletas não quer que você deixe de usá-la porque está quebrada ou com algum defeito. Ele quer que você encontre uma, passe seu celular, suba e saia andando, enquanto vai debitando dinheirinhos do seu cartão de crédito. Então muda o jeito de projetar e produzir a bicicleta; ela passa a ser mais resistente e, teoricamente, tem uma manutenção mais simples, barata e rápida, porque o dono da empresa de locação também não quer gastar rios de dinheiro na manutenção da bicicleta, certo?

O consumo colaborativo opera numa lógica diferente da obsolescência programada (vigente), que quer que você compre, use só um pouquinho e logo troque por uma nova. E além disso, como são produtos compartilhados, não individuais, é menos matéria prima para fazê-los e menos produtos no mundo que, se virariam lixo um dia, não virarão.

De uma certa maneira, consumo consciente (e também o colaborativo) é o ato de fazer perguntas: preciso mesmo disso? Preciso ter isso ou preciso do que isso me traz? E será que se só preciso do que isso me traz, não vale alugar? Não vale emprestar?

Porque nossas escolhas, mostram que tipo de consumidores somos e nos dá o poder (ainda que possa parecer pequeno) de validar e ampliar uma iniciativa como essa da bicicleta, pois evidencia que há mercado para o consumo colaborativo e o compartilhamento de bens.

Nesse caso da bicicleta, aos poucos ele vai mexendo até na legislação, para a cidade não virar uma bagunça; e também vai dando pistas e elementos para a indústria pensar dentro dessa nova lógica. E eu acredito que as coisas só mudam quando consumidores, indústria e legislação fizerem cada um a sua parte.

*Victor Papanek, o nome dele, para algum designer interessado.

Sobre a Autora

Lia Assumpção é designer, mestre em Arquitetura e Design pela FAU-USP, curiosa dos assuntos relacionados a consumo e sustentabilidade.

Sobre o Blog

Este blog é sobre consumo consciente porque nem tudo que é reciclável é reciclado. É escrito por uma designer, inquieta com a maneira como consumimos e descartamos coisas e crédula de que só uma iniciativa compartilhada entre indústria, poder público e consumidores conscientes pode alterar a lógica consumo-descarte vigente. A ideia aqui é falar sobre atitudes cotidianas, tentando um meio a meio entre reflexões e soluções práticas.